De como a comida nos humanizou
O que nos diferencia das demais criaturas é uma questão um tanto filosófica e que já encheu muitas páginas de muitos livros. “Os humanos pensam e os animais não”, dizem alguns. Mas a cada dia a ciência nos mostra que os animais, à sua maneira, também pensam. “Os humanos têm sentimentos e os animais não.” Mas todos os que convivem com cães ou gatos vão discordar. E assim podemos continuar com muitas outras argumentações, algumas sem termos resposta ou certeza, como aquela em que se diz que só nós, os humanos, acreditamos em um Ser Superior e que só nós temos consciência da morte. Será?
Entretanto, há um fato bem estudado e que indica sem sombra de dúvidas que temos uma diferença fundamental com as demais criaturas terrestres: nenhum outro animal transforma o seu alimento antes de consumi-lo nem ritualiza este consumo. Parece ser essa realmente a grande diferença entra nós e os outros habitantes do nosso planeta: OS HUMANOS SÃO OS ÚNICOS SERES QUE TRANSFORMAM OS ALIMENTOS ANTES DO CONSUMO E QUE RITUALIZAM ESSE CONSUMO.
Quando paramos para pensar nesse fato nos damos conta de que algo tão corriqueiro quanto comer uma fatia de bolo com café é no fundo algo extraordinário. Primeiro, o trigo teve que ser plantado, colhido e transformado em farinha. As galinhas tiveram que produzir os ovos. As vacas foram ordenhadas para se obter o leite e dele a manteiga. As canas-de-açúcar foram plantadas, colhidas e prensadas para que do seu suco se produzisse o açúcar. O fermento em pó foi preparado em uma indústria. Idem para o café. Se isso não bastasse, ritualizamos tanto o processo de preparar esse bolo e esse café quanto o de servi-los e consumi-los. Há bolos que são assados em formas redondas, outros quadrados, outros com um furo central. Um rocambole tem que ser ... em formato de rocambole, senão deixa de sê-lo. E há a maneira de servir: o café, se puro, numa xícara pequena. Se com leite, numa xicara maior. A fatia de bolo cortada com uma faca e servida num pratinho, consumida com um garfo. Ou de maneira mais “troglodita” - e que às vezes é a melhor! - diretamente, com as mãos. E era só um bolinho com café ...
Até o que aparentemente consumimos cru, como uma salada ou um sashimi, o famoso ‘peixe cru’ dos japoneses, é de alguma forma “cozinhado culturalmente”, há um tipo de transformação cultural já que os elementos básicos não são servidos tal qual a natureza os oferece.
Segundo muitos antropólogos, a transformação dos alimentos pelo fogo foi a grande força civilizadora, o que acelerou nossa evolução de símios a humanos. A importância do fogo na nossa evolução acabou se impregnando no nosso inconsciente coletivo: não há um só povo na História Universal que não tenha suas lendas e mitos sobre a descoberta do fogo.
Escrito por Sandra Mian, nossa nova colaboradora, engenheira de alimentos pela FEA, Unicamp, com vastos conhecimentos em história, sociologia e antropologia da alimentação e dos espaços do habitar (universo da comida e da roupa). Com mais de 30 anos de experiência, desenvolve trabalhos no Brasil, EUA, Canadá e no México. Atualmente pela a empresa de consultoria B-Ahead Consulting Inc., atua em processos de inovação com metodologias como etnografia em profundidade e Design Thinking. Escreve para a revista CarneTec (Brasil e América Latina), uma publicação especializada na indústria de carnes. Em 2017 e 2018 apresentou trabalhos de investigação no prestigiado Oxford Symposium on Food and Cookery e os artigos referentes a essas investigações publicados pela Prospect Books, UK. Com presença ativa nas mídias sociais, criou um grupo de discussão de temas relacionados à comida e alimentação, hoje com cerca de 1,600 membros. Esse grupo permite à consultora entender os mecanismos do storytelling nas comunicações sobre alimentação e saúde e as relações antropológicas e sociológicas da comida com o ser humano. É membro do Culinary Historians Institute of New York e de grupos como o OSFC, Writing the Kitchen, FOST e outros grupos de discussão sobre temas culturais acerca da alimentação.